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Corolário

(ou Por meio da cor-habitat, da cor-trajeto, dos ecos-mundo)

 

De início, são apenas as ferramentas típicas de um pintor, jovem, no labor diário. Ao fundo, latidos de cachorros e a agitação cotidiana de crianças que brincam nas ruas, travessas e ladeiras entre a Vila Nair e o Alto do Ipiranga, zona sudeste de São Paulo. Na caminhada entre a estação de metrô e o ateliê, numa antiga fábrica de molduras, se desenrolam sobrados, pequenos entrepostos comerciais e novos itens, esses cada vez mais presentes. Terrenos em um desmanchar incessante das antigas construções, ruínas, uma poeira algo branca, algo pedregosa, que impregna ambientes variados. Tais quais pontaletes em bege, monocromos sem força, totens a reforçar uma arquitetura natimorta, as novas edificações se repetem monocordicamente, jogando veículos nas ruas estreitas. O panorama em seguida transmutação resulta numa paisagem intermediária, hoje comum nos novos aglomerados urbanos do Sul global.
 

Ladeado por outros artistas, a maioria também afeita a pinceis, telas, faturas, pensamentos cromáticos e gestos, Edu Silva produz com persistência no campo pictórico – ou seja, pinturas que podem ser tanto os quadros bidimensionais que representam faz muito a linguagem, mas também experiências algo arriscadas da linguagem pelo espaço, como os inéditos objetos-cubo que apresenta em Corolário, a primeira individual na Luis Maluf Galeria. Grosso modo, o título da mostra se refere a um pensamento ou consequência derivado de uma premissa, de uma ideia anterior.

Longe de uma concepção apenas formal, realçar a pesquisa ininterrupta, dentro de uma disciplina diária, de um fazer costumeiro, joga luzes sobre o corpus de obra do artista. Os campos de cor em embates constantes, por sobre as superfícies ora lisas, ora permeáveis, se mesclam em processos por vezes mais lentos e, já sobre o chassi, podem manifestar cores mais fortes que traçam sua robustez via delimitações de ordem gráfica. Tanto em escalas generosas como em tamanhos ‘de câmara’, as linhas configuram territórios, arquipélagos, continentes e topologias de cores, planos e volumes que se desdobram à maneira de cartografias poéticas a serviço de uma visualidade movediça e não conformada.

Algumas séries, no entanto, exasperam o que poderia ser um tom apenas harmônico. Por meio de procedimentos e construções formais, a poética de Silva vai conjugando elementos que, já por meio de outra camada de leitura, se conectam com a sua condição de artista egresso das periferias e que discute a questão racial no Brasil.

Em um país que esconde o passado escravocrata violento – pensemos em, por exemplo, termos de verdadeiro horror como ‘racismo cordial’, para ficarmos apenas em etimologias – e de marcada desigualdade social, a criação de Resistências (2019), em que papelão numa coloração kraft bastante comum é disposto junto de um mármore polido, em peça de ar construtivo, provoca outras leituras que não apenas as da visualidade. Há também trabalhos em que áreas algo bege, algo ocre, se aproximam de rasgos por conta das bordas feitas mais irregularmente. Em outros, a nobreza do linho escapa de mero receptáculo das tintas e se torna cor não apenas de fundo. Em 1979 (2019), objetos escapam da bidimensionalidade em caixas de vidro que abrigam diminutos círculos de um pardo opaco. A cada movimentação, um novo dispor. Série que, em conjunto com outras parecidas, coloca a investigação do artista a serviço de discussões atuais bastante pungentes.

A memória é outro vetor relevante em Corolário. Os objetos-cubo, intitulados Entre (2020), que se filiam ao tridimensional e também a um pictórico mais expandido podem se ligar à infância do artista, perto do pai marmorista, em momentos lúdicos. E, se nos detivermos numa visada sobre as pinturas stricto sensu, tintas, texturas e matérias que ocupam, desenham e se espalham parecem também demarcar trajetórias, estabelecer percursos, atestar processos e instantes de jornadas alongadas ou rotineiras. Antes de ser designer e artista, ele trabalhou em diversos empregos distantes de onde morava – num só exemplo, das cercanias de Embu para a Faria Lima todos os dias. Assim, deslocamento é um conceito central na produção de Edu Silva, que, por isso, aproxima o seu fazer de práticas contemporâneas de pares. “O artista tornou-se o protótipo do viajante contemporâneo, o Homo viator, cuja passagem através dos signos e formatos remete a uma experiência contemporânea da mobilidade, do deslocamento, da travessia” [1], argumenta Bourriaud. “Deslocar o ponto de vista e as convenções com base nas quais se pensam as coisas é, no fundo, a mais fecunda das transformações possíveis” [2], analisa Careri.

 

Nesses dias de obscurantismo no debate público e de anti-intelectualismo em um nível mundial, entre outros infortúnios, celebrar a consistência da investigação de Silva nos faz lembrar brilhantes proposições como a dos ecos-mundo, de Edouard Glissant (1928-2011) – cujo legado, a propósito, foi trabalhado de modo ímpar na videoinstalação Por um novo barroco de vozes (2021) de Manthia Diawara na 34ª Bienal de São Paulo. “As únicas estabilidades manifestas na Relação dizem respeito à solidariedade dos ciclos que aí estão em jogo, à correspondência dos desenhos de seu movimento. O pensamento analítico é convidado a construir conjuntos, cujas variações solidárias reconstituem a totalidade do jogo. Esses conjuntos não são modelos, mas reveladores ecos-mundo. O pensamento compõe música” [3], revela o pensador nascido na Martinica.

 

Pois sim, o pensamento pode compor música, formar perspectivas que transbordam, criar mundos que ecoam não apenas ruídos, fricções e fundamentalismos. Olhares acurados e não óbvios a partir da particular matéria poética de Edu Silva, que, lidando com habilidade entre a contenção e a expansão, a delimitação e a insurgência, o demarcar e o espalhar, o anonimato e a autoralidade, consegue, de modo brilhante, suplantar as paisagens intermediárias que golpeiam e vêm de encontro a nós com rapidez assustadora. Mario Gioia, agosto de 2022

 

Mario Gioia, agosto de 2022

     

 

 

1. BOURRIAUD, Nicolas. Radicante. São Paulo, Martins Fontes, 2011, p. 114.

2. CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo, Gustavo Gili, 2017, p. 122.

3. GLISSANT, Édouard. Poética da relação. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2021, p. 120-21.

Para além do campo da cor

 

Em uma primeira interpretação sobre o trabalho de Edu Silva, penso que a matéria discursiva do artista, a princípio, seria a própria pintura. Mas o acúmulo de cores que acabam embalando os espectadores em um estado de conforto contemplativo surge como uma espécie de pretexto para capturar o espectador em uma segunda camada discursiva presente em seu trabalho: é possível falar sobre questões raciais de forma subjetiva? A partir do estabelecimento de tensões e harmonias entre o uso das cores, o artista cria metáforas para refletir sobre tais questões sociais como raça, mestiçagem e vulnerabilidade social, sugerindo que suas pinturas não são totalmente desprovidas de uma discussão política.

 

As pinturas de Edu são criadas a partir de uma cor predominante e outras que se estabelecem de forma complementar, tornando suas experimentações com cores uma complexa tratativa pictórica. Embora elas harmonicamente convivam na tela, por trás dessa possível convivência pacífica/passiva, há um apontamento feito pelo artista de que para uma cor se impor, outras precisam ser rebaixadas. Para que a cor principal se destaque, ela quase que expulsa as outras da pintura. Dessa forma, metaforicamente, Edu sugere uma reflexão sobre o racismo estrutural introjetado na sociedade brasileira.

Mas as discussões raciais e de vulnerabilidade social não perpassam apenas as discussões cromáticas. Já na abstração geométrica construída por Edu, as linhas estabelecem uma discussão acerca de fronteiras territoriais que separam centro de periferias, criando limites de trânsito que não são apenas físicos, mas também psicológicos, enfatizando tais questões nas linhas que representam tais fronteiras na sua pintura.

 

Assim, ao estabelecer esses paralelos, optando pela não figuração, Edu Silva nos devolve um pensamento de que há muito a ser percebido além da imagem. Por isso é interessante pensar como o artista evoca magistralmente um pensamento minimalista para retratar tal brutalidade imposta às margens. Um ponto fora da curva, mas imensamente importante para colocar tais discussões em outras perspectivas. 

Carollina Lauriano  

edu silva: paisagem marginal

 

Em um primeiro olhar, parece fácil compreender o que as pinturas de Edu Silva pretendem. A leitura imediata das telas reverbera nos olhos os matizes saturados, que apresentam grandes áreas de cores densas, chapadas, que se sobrepõem em oposição, embatendo forças à frente da lona. Se contrastam em intensas tonalidades carregando sempre uma marca de lugar, o rastro de uma linha imaginária de tinta, que formalizam zonas de cor. Elementos pesados, agrupados da maneira mais simples possível.

 

A vista superior, que parece ser a de uma janela de avião, torna possível fotografar pela retina dos olhos, o trecho geográfico, um pedaço de terra que se assemelha à visualidade de um mapa que torna visível as demarcações territoriais por meio das texturas, folhagens, e traçados territoriais, estipulados por propriedades, ou pela própria geografia. As possibilidades são infindáveis, mas a unidade da pintura é dada pela relação entre as cores. É a sensação de estar vendo de cima, territórios cromáticos, regiões pigmentadas, que fazem o trabalho do artista assumir esse caráter de paisagem.

O protagonista do trabalho é a cor. No momento em que uma cor se estabelece como padrão dominante enquanto outras cores ocupam áreas menores, enveredando às margens da pintura existe aí o confronto. É no choque, no encontro impetuoso de dois campos cromáticos, que surgem as linhas e formas geométricas, que parecem definir e delimitar as zonas coloridas umas das outras, sugerindo traços de limite, fronteiras da extensão da cor e por consequência, uma paisagem marginal. 

 

Se pensarmos nessas demarcações como fronteiras, que metaforicamente criam uma separação entre dominantes e dominados, disputando espaço sobre a área planificada da tinta sobre a tela, nos arrebatam também, os reflexos disso para uma leitura social, das disputas territoriais latentes na contemporaneidade. Foi como processo, que o artista utilizou-se de sua experiência de estar entre margens, por entre trajetos, viagens e deslocamentos diários. A paisagem habitou o seu olhar e treinou a sua percepção a entender o conceito de limites e atravessamentos. São as margens sociais que trazem à consciência do artista, o seu lugar de fala e atividade pictórica.

Núria Vieira  

das conversas com edu Silva

 

Os chamados não-lugares, para Marc Augé, são como um espaço de passagem incapaz de dar forma a qualquer tipo de identidade. Edu Silva é um pintor das peles. Pinturas, escrituras de cores-camadas e entre-linhas-intervalos. 

Pinturas-carne-ossos-vísceras !

Pardo, dizem que é cor. Cor de pele. Não existe na escala de cores, mas nas pinturas-caRnadas de Edu Silva. Nas pinturas VIDA que pulsam. Pululam. Na pintura escavada de formantes matéricos, da Arte e da Vida. Sem concessão.

Edu, desde sua pintura-nascente dialoga com os latino americanos, com Torres Garcia, uma estrutura finamente trabalhada, porque assumida entre os ditos, os não-ditos, os não-lugares. 

Com os cromatismos de Armando Reverón, a “borrar” tons e cores, palhetas e policromias, paisagens e “surrealismos”, situações a entre-ver. Artistas das Américas Latinas e suas ousadias antecipando os “movimentos” da arte, chamada europeia e americana.

“Pardo é um termo usado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para nomear um dos cinco grupos de ‘cor e raça’ que compõem a população brasileira: brancos, pretos, amarelos e indígenas”. E pardo, a cor dos mestiços. Como se não fôssemos, no mundo, todos mestiços. Cada um de nós é muitas etnias. Discordo dessa “pardassagem”. Um “pardismo” escanteador. Negador de vidasAcesas.

 

Edu assume e pinta as carnes-pardas, pesquisa esse lugar da cor-aditiva de tintas-e-materiais-pardos. Vigorosos !

Edu desenha mínimas luzes entre contrastes de cor, linhas desenhantes e linhas escultóricas. No limiar. Um cromatismo aqui outro ali. Todos lá, afastamentos que se interpenetram. Em uníssono. Edu não opõe. Engloba. Sustenta uma cor-luz que se realiza e nos a.tenta. A pintura VAZA. Contamina. A pintura VIBRA. 

A cor, em Edu Silva é gerúndio. Pintura Acontecente !

 

Lucimar Bello. 07.02.2020 

edu Silva: o arquipélago mestiço

 

Muito importante que nestas experimentações pictóricas sobre a mestiçagem Edu Silva tenha abandonado qualquer menção temática ou ideológica: o que importa são as massas cromáticas, grandes ou miúdas, enormemente decorativas, que se aproximam e se encaixam, mostrando as costuras entre contrastes ou pequenos alinhavos e cerziduras mirins, essas moléculas de passagem de uma cor para outra. Valem muito aqui estes pontos ou nós de entrelaçamento, esse gesto do bordado que liga uma coisa à outra. Já estamos agora longe do uso trivial, apressado e modernoso do termo “hibridismo”.

 

O que interessa é a juntura (não aquilo ou quem está junto) como dobradiça móvel em andamento e expansão, metamorfose inconclusa e infinita das formas e materiais. Trata-se aqui de educar os olhos para ver “isso que enlaça uma pérola com outra”, conforme diziam os músicos e poetas afro-árabes. Jogos de forma e luz que estão nas relações entre cultura e natureza muito antes dos sujeitos. 


Portanto, ao abandonar as dualidades de oposição, Edu dá preferência aos mais variados e assimétricos campos de relação e aos processos internos constitutivos das coisas (que sempre se compõem com partículas de muitas outras). Confere assim continuidade ao descontínuo. Conjuntos/formatos matizados, numa gama colorista esplendorosamente lapidada, se

intersectam sintaticamente, por meio de cortes e chanfraduras sinuosos e retorcidos, parecendo colhidos de um magma telúrico e tectônico no compasso dos abalos de reacomodação sísmica. Pintura, escultura, arquitetura em dança de cores.

 

Formas mestiças no fundamento terroso e pedrento das coisas. Daí que as mesclas e suturas deixem sempre à mostra e ao vivo saliências geológicas feitas de calombos e murundus rombudos, com suas roçaduras calosas, que expõem as interações entre as diferenças e os paradoxos entre o grande e o pequeno, o alto e o baixo, a frente e o verso, o direito e o avesso: todas essas tarefas da criação de um panorama de conhecimento lúdico-mestiço e nativo-atual para fora de todas as domesticações da história oficial, “antiga” ou “moderna” (seja de que lado essa domesticação facilitadora vier). 

 

Essa é uma festa das alteridades incrustadas. Aquilo que no barroco se diz lista díspar, pela inclusão participante de repertórios desiguais e abandonados, Edu traduz como arquipélago mestiço. Atenção: parece que sempre novos barrancos, ilhas ou recifes vão surgir e recompor a paisagem, os bairros, os corpos e a vida.

 

 

 

Amálio Pinheiro

edu Silva e os processos artísticos para a construção de sensações

 

As obras de arte construídas pelo artista visual Edu Silva são resultado de seus processos de pesquisa e tem como ponto de partida questões sociais e raciais. Ao mesmo tempo, as composições projetam-se e diluem-se em manifestos artísticos, com fundamento e estrutura em procedimentos resultantes da articulação de vivências particulares em técnicas produtivas, exclusivas, inéditas e atualizadas com a realidade contemporânea.

As obras da série Estudo sobre mestiçagem reverberam esta combinação vivência/referência/construção. Estas associações se fazem evidentes a partir das composições abstratas em planos de cor elaborados com tinta acrílica em tela. Zonas monocromáticas irregulares disputam alternadamente espaços matizados, onde a cartografia resultante da citada delimitação reforça e valida as convicções do artista na realidade que o atinge e circunda.

Assim, as controvérsias na sobreposição de camadas auguram deslocamentos projetivos entre o caos e o vazio, entre as fissuras e a completude sensorial, em frames editados em cada obra e na concepção original delas. Os processos de criação de Silva estão fundamentados, porém não delimitados, nas vivências dele na periferia de Embu das Artes, São Paulo, Brasil e em seus inerentes conflitos de realidades entre classes sociais.

Para Edu Silva, a abordagem e representação destes temas fazem parte de sua pesquisa artística: as fissuras cartográficas e o cromatismo dos manifestos visuais convergem expressões da resistência e declaração do desejo do artista de fazer parte de um mundo sem diferenciação de cor, raça, sexo e, principalmente, do seu respeito a diversidade.

Já na série Autorretrato, a formatação cromática dilui-se na relação literal entre a segregação e a mestiçagem, na experiência do artista com o outro. A manifestação se evidencia nas marcas tridimensionais das linhas diagonais que expressam-se delineadoras adirecionais de camadas pictóricas irregulares estruturadas. Ao mesmo tempo que sugere sinais de ruptura com visões

topográficas de passagens e paisagens, faz transgredir sua produção artística como catalisador de processos de construção e discussão estéticas contemporâneas.

As obras foram exibidas pela primeira vez na exposição coletiva Pintura Expandida na Galeria Virgílio em 2018. O texto da mostra indicava que a projeção e transgressão das composições partiam de interstícios processuais de carga autoral acentuada: aquela sensação que, segundo o filósofo Gilles Deleuze, está no corpo, e não no ar. 

 

a sensação é o que é pintado. O que está pintado no quadro é o corpo, não quanto representado, mas enquanto vivido como experimentando determinada sensação1.

O complemento e o equilíbrio na mesma dimensão dos corpos se inserem eufemisticamente nestes espaços, em intervalos de tensionamentos - os agentes artísticos contemporâneos. Revela-se assim a vontade do artista, não de reproduzir ou inventar formas, mas de captar e projetar forças, tornando-se visível na essência de Paul Klee.

Andrés I. M. Hernández
Curador e professor. São Paulo verão de 2018

1 Ver DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: Lógica da sensação. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2007

sobre coisas difíceis

 

O desenvolvimento de um trabalho em artes não é imediato nem linear. 

Se entendermos esse processo como pensamentos que são sistematizados, de maneira particular pelo artista, e adquirem conformação, material ou imaterial, conseguimos ter a possibilidade para um entendimento mais pleno do trabalho executado. Alguns artistas, em qualquer linguagem, tornam sua produção mais complexa ou “difícil” dotando-a de características que parecem incompreensíveis ou são menos assimiláveis. Há duas linhas de compreensão para este enunciado: uma considera este tornar-se “difícil” uma opção enquanto estratégia e com implicações variadas. A outra é menos opção que necessidade, pois esse artista precisa alcançar algo que ele não sabe o que é.

 

As pinturas recentes de Edu Silva são difíceis; principalmente se comparadas a sua produção anterior onde a representação do espaço de vivência (o bairro, as casas) era figurativo em certa medida e com uma opção gráfica que dialogava com os grafittis. Isto, evidentemente, tornava-as mais assimiláveis, mais “fáceis”. Todavia, como foi dito antes, deixa-las mais complexas não foi opção e sim consequência necessária do tecido imaterial onde mesclou suas tintas, à saber: as tramas e urdiduras da realidade social e os espaços onde ela se organiza e ocorre. O que legitima essa sua busca é a honestidade com o que produz e consigo mesmo, ainda que isso não seja garantia de nada para si[1] , ainda mais em tempos de desgaste abrasivo sobre essa palavra. Estes aspectos imateriais, ou não formais, poderiam tornar sua obra mais assimilável se ela fosse premida por algo diverso da honestidade e sucumbisse ao panfletário como vemos usualmente. Seu caminho é outro.

A junção dos componentes imateriais entremeados aos aspectos formais, que esteticamente Edu utiliza, tem matriz moderna, mas como um jogo entre material e imaterial extremamente contemporâneo; não como moda, mas como inquietação própria do tempo que vivemos. Esse “jogo”, ou negociação, acontece em vários estágios concomitantes, do qual o espaço é o estágio fundante para que dois “times”, como em um bom jogo, ajam em campos opostos: um é o espaço material da tela e o outro é o espaço urbano das periferias, real, mas tornado imaterial através da subjetivação do olhar e sua consequente abstração construtiva. A maioria das telas utilizadas possuem o formato quadrado, como se o espaço regular de lados iguais tivesse a capacidade de equalizar as tensões que ocorrerão em seus limites. Tal como se as periferias contidas em nacos distantes aplacassem as tensões sociais. Penso que muito da tensão presente nos trabalhos desta exposição surgem da necessidade auto imposta pelo artista de conter a tinta nesta quadratura.

Estabelecido o campo de atuação de forcas o estágio seguinte é conformado pelas cores. Aqui Edu Silva tratará as questões raciais e de segregação que o afligem de maneira inusual, onde o pensar sobre possui uma elaboração intelectual natural (e por isso mesmo tão feliz em sua consecução) que surpreende. Ao denominar esta série de pinturas “Estudos sobre Mestiçagem” ele explicita a questão principal de suas pesquisas e inquietações, mas não se vale disso de maneira panfletária. Ele rompe com o encaminhamento usual ou mais simples de usar uma paleta “humana” (nas palavras do artista) para representações óbvias em relação ao tema pretendido [2] .

Edu usa a liberdade para desenvolver uma paleta que busca uma harmonia complexa, através de uma construção  que organiza o espaço  por meio de planos de cores predominantes espacialmente, normalmente em dois tons, com fatura mais uniforme que cobrem boa parte da tela; em algumas as bordas dessas áreas estão “manchadas”, em outras isto não acontece. Surgem entre esses campos de cores fissuras com cores outras que afloram e se tornam visíveis, muitas vezes enfatizando a área menor. A convivência entre essas cores belas e conflituosas, com suas interações negociadas à duras penas entre as fissuras ou bordas da tela,  como se forçassem a trama de um tecido íntegro e coeso, mas na verdade puído, que cobre tal qual um tapete aquilo que não deve ser mostrado. Qualquer semelhança com nossa sociedade não é mera coincidência.

A junção arte e política sempre foi prejudicial para a primeira. Ao incumbir a arte de uma função, normalmente ela se rebaixa ou perde sua potência exatamente onde foi requisitada. Já foi dito que a arte alcança o objetivo que não tem[3] . Definir um objetivo, uma função, é diferente de ter com que e sobre o que produzir arte. Daí decorre, para artistas como Edu Silva, as incertezas, as angustias de uma produção que está em embate constante entre o fazer e o comunicar algo. Acredito que a série “Estudos Sobre Mestiçagem” retira sua força também de uma necessidade de beleza que Edu persegue insistentemente. Não é a beleza pasteurizada ou do senso comum, mas sim aquela beleza que incomoda e que, sobretudo, nos faz pensar; que nos faz olhar as coisas com calma e questionar que, sim, há outras possibilidades nas relações entre os diferentes convivendo num mesmo espaço, desde que haja um desvelamento sincero daquilo que está oculto. Porém, não nos enganemos: isto não é fácil.

Conta-se que um filósofo e um respeitado sacerdote conversavam sobre o que seria o belo. Os questionamentos se alongavam e o filósofo ia demonstrando, ardilosamente, que a beleza poderia assumir várias formas ao que o sacerdote ia retrucando que isto não era possível pois a beleza deveria residir em coisas elevadas ou consensuais à maioria das pessoas. Polidamente, o filósofo fez ver ao sacerdote que era possível se enganar a respeito da beleza e onde ela residia , desde que fossemos capazes de ir além da doxa (opinião), expandindo nossa compreensão através de questionamentos e concluía a conversa com uma frase:

“A beleza é coisa difícil” [4]

 

Marcelo Salles

     

 

[1] Citação à Clement Greenberg in Crônica de arte, pg.179, Arte e Cultura, editora Cosac & Naify.

[2] Recentemente a artista Adriana Varejão apresentou uma serie de telas (Polvo Portraits) onde desenvolveu uma paleta de tons “de pele brasileira”. Ainda que conceitualmente irreprensível o resultado é um tanto constrangedor .

[3] a autoria desta frase parece ser de Benjamin Constant; citado por Jean Philippe Domecq in Uma Nova Introducão à Arte do Século XX

[4] Hípias Maior, diálogo platônico entre Sócrates e Hípias Maior

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